terça-feira, março 28, 2006

I dont kiss strangers. Neither do I


Tenho vestida uma camisa branca. Arranquei-a da cadeira antes mesmo de tomar o banho. É por causa do cheiro, o cheiro que deixo na roupa e que me lembra o seu olhar todas as vezes que o sentia. Caiem as pálpebras, recolhem os dentes e depois das mãos recuperarem o meu corpo, há o momento do silêncio em que o meu perfume lhe enche a cabeça. A minha camisa tem esta memória porque sou egoísta. É mais fácil encarar a saudade num bocado de roupa do que numa fotografia ou rosto.
A campainha já tocou mas o chá é mais importante. Onde é que aprendi a gostar tanto de chá? Acho que foi por altura de uma paixão e de um sabor constante. Beber chá ao lado de um amor velho. De cores antigas. Cinzentas. Não é bonito? Bonito e reconfortante como a cama quente onde nos deitávamos só para ficarmos. O chá tem o mesmo tempo de se perder como o tempo que perco a pensar nessa cama.
A campainha tocou novamente. Vou ter de me levantar deste banco. Anda. Anda, anda lá. A câmara fotográfica está mesmo junto à chávena. Tenho de trabalhar e ainda nem sequer escolhi a lente. Deixo para depois do rosto aparecer. Mais um escritor? Mas a escrita está ainda na moda? Não sabia. Eu deixei de ler desde que ele se foi embora. Será rancor? Tristeza não é, tenho a certeza, pois sei que o hábito cria ilusões. O amor ainda não é da minha fé. Abro a porta.
Parece gay. Talvez seja do cinema. Nova Iorque. Sim e a Times Square cheia de gente e barulho colorido. Deve ser de Nova Iorque porque está tão sozinho como o vendedor de bagles que me estendeu uma com cream cheese. Dan, olá o meu nome é Anna: entre e deixe-se estar à vontade. Um chá? É vermelho, da África do Sul. Sem cafeína, passo o dia a beber. Com ou sem açúcar?
Dan senta-se à frente do tripé. Uso tripé ou não uso tripé. Depende da minha mão. Só porque me voltei a lembrar dele, tenho mesmo de usar o tripé. Meter conversa? Tem de ser. Faz parte do job. Li o seu manuscrito. Sim, o editor enviou-mo. É habitual quando tenho de fotografar algum autor. Não, não achei enfadonho. Li-o a noite passada. Fiquei acordada até às 4 da manhã. E ouvi Bebel Gilberto. Quase me apaixonei por si, sabia? Pensamentos possíveis. Só na minha cabeça. Apaixonar-me por um estranho que me faz ouvir músicas e ler frases cruas. E cinema, e rodear o meu espaço de cenas de cinema. Dan, desculpe, pode virar-se para a esquerda, sim? Obrigada. Perfil correcto, olhar triste. Dan, desculpe, pode dizer-me se anda à procura do amor? Sim? Obrigada. O amor, acha que também se paga? Anna, sim, Anna. Sim, tenho uma exposição marcada para o próximo ano. O seu livro também sai no próximo ano? Ok. Já terminei. Ele aproxima-se. Aproxima-se. Beija-me e diz-me que me quer ver. A música? A já partilhada, antes mesmo de o conhecer? Balança na minha cabeça. Está mesmo a acontecer? Afinal, o que é que eu tenho vestido? A mesma camisa branca de ontem à noite que tem o meu cheiro e a memória de saber que num beijo assim estão os lábios do amor. Desconhecido.

recriação livre de uma cena de

"Closer" (2004)
real: Mike Nicols

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

O branco como soma de todas as cores, leva-nos aos sonhos coloridos, e ..."o amor é a invenção de tudo, uma originalidade inesgotável. Fundamentalmente, uma inocência".

Fernando Namora, in 'Jornal sem Data'

3:44 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

... e fizeste muito bem em recriar :) Obrigada pela visita lá no "Gola"!!

12:05 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

que bem que escreves, que bonito é o teu tão discreto e secreto blog. banditocinema.LA
http://lauroantonioapresenta.blogspot.com/

7:56 da tarde  

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